domingo, dezembro 30, 2012

A MENINA DAS FLORES AZUIS


A vida é sem jeito. Meio marota,  teimosa. Mas seja lá o que for,  ela ensina.  Lá naquele mundão distante, João, Lidia, Dayse e uma menina se encarregaram de colocar a vida em pratos limpos.
João era vaidoso. O  bigode estilo Humphrey Bogart dava-lhe um certo charme. O cabelo e barba bem aparados o rejuvenescia. O marmanjo passava dos trinta. Uma passada de brilhantina domava os fios de cabelos encrespados. Sempre fazia cara de enfezado e falava grosso diante de qualquer contrariedade.
A Lidia, ah!  Esta uma pobre coitada. Quando solteira dava-se ao luxo de usar salto alto e saia justa. Os olhos verdes e o corpo esguio contribuíam para a elegância da moça. Bastou casar com João para largar  o trabalho na tipografia. Ora veja. Engravidou dois meses depois de casada. Vivia com um lenço amarrado na cabeça e um permanente avental de saco tingido de azul, independente de estar ou não na lida.
Dayse veio rápido.  Afinal, Lídia já tinha 26 anos ao casar. A idade avançada apressou o casal a  ter filhos. A menina era linda. Por onde andasse, Dayse chamava a atenção pela delicadeza dos traços. Só que o choro da criança incomodava João. Por isso, nas noites de manha intensa, ele saia a perambular pelas ruas e, à vezes, só voltava uns três dias depois.
Lídia se resignava. Nada faltava para ela e a filha e, no fundo,  tinha orgulho do marido bonitão. Orgulho maior em saber que ele trabalhava na Real, uma agência de venda passagens aéreas  dos voos da Pan Air.  
E a menina? Sem pai e mãe por perto, Lídia decidiu dar guarida a garota raquítica. O acolhimento não incluia comida e roupa lavada. Com sete anos, a menina se virava como podia. Ao apertar a fome, comia pitanga e guabiroba do campo. Cuidar de Dayse para que Lidia pudesse fazer os trabalhos domésticos rendia-lhe uns créditos de boa conduta. Então podia comer polenta e usar o sabão para lavar-se antes de dormir.
A menina tinha um sonho. Imaginava ter uma calcinha  de flores pequenas azuis e de ponto russo nas bordas, igual a das outras garotas. Num desses tantos Natais que ficam para a história, Lídia se embrenhou na máquina de costura, fez e deu-lhe a calcinha tão sonhada. Mas a menina nunca chegou a usá-la. De tão satisfeita, pendurou-a num cabide e de vez em quando admirava aquele que seria o presente mais valioso da sua vida.
João se postava cada vez mais ausente. Os sumiços aumentavam, a ponto de ficar  semanas longe da família. Um dia Lídia se enfezou. Largou Dayse com a vizinha da frente, pegou a menina pela mão e lá se foram as duas noite a dentro a  procura de João.  Lídia desconfiava que o marido se embrenhava com outra mulher. A desconfiança aumentou depois de João faltar com a comida em casa.
Ruas escuras, barrentas e desertas. Apenas um bar aqui e acolá iluminado com lâmpada de 40 watts. Homens feios, desatinados, bêbados, mulheres embriagadas a equilibrar-se num copo de cachaça. Uma mesa de sinuca e a luz tênue se encarregando de iluminar a bola a caminho da caçapa. Perto da meia-noite.
Num desses antros estava João. Ao vê-lo abraçado com uma mulher morena de cabelos cacheados,  Lídia perdeu as estribeiras.  Pegou um taco da sinuca e quebrou tudo o que viu pela frente, exceto os traidores, porque num lance de esperteza eles se esconderam atrás do balcão.
A menina se encolheu num canto e começou a chorar. A cena a amedrontou.
A volta prá casa foi trágica. Totalmente transtornada, Lídia gritava de raiva sem parar. E a roupa do João, bem cuidada pela prestimosa esposa? Não sobrou uma peça no armário. Calças, camisas, cuecas, foram arremessadas pela janela em ímpetos de fúria assassina.
A situação mudou. Para não perecer, Lidia começou a lavar roupa prá fora e a menina também começou a dar duro no batente.
Enquanto Lídia esfregava a rouparada no tanque, a mirrada menina puxava a água do poço. Um pedaço de madeira improvisado servia de apoio para alcançar a manivela. Seus braços não aguentariam o balde cheio d’água, então o jeito era puxar de pouco em pouco.
Peças coaradas, com o cheiro gostoso  de roupa secada ao sol. Lá ia a menina com a trouxa na cabeça, com todo cuidado para não sujar o que foi lavado com tanto sacrifício. A natureza ajudou e a roupa secou a tempo de entregá-la antes da ceia de Natal.
Da porta, a menina olhou de soslaio aquela sala de gente rica toda enfeitada para a noite de Natal. Ali, hipnotizada com tanta beleza, aguardava pacientemente o dinheiro da lavagem das roupas.
Também ganhou um presente. Ou melhor, dois. Um pacote de bolacha, que de pronto repartiu com Lidia e Dayse e o outro... Uma calcinha de pequeninas flores azuis. 

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