A vida é sem jeito. Meio marota, teimosa. Mas seja lá o que for, ela ensina. Lá naquele mundão distante, João, Lidia, Dayse
e uma menina se encarregaram de colocar a vida em pratos limpos.
João era vaidoso. O bigode estilo Humphrey Bogart dava-lhe um certo
charme. O cabelo e barba bem aparados o rejuvenescia. O marmanjo passava dos
trinta. Uma passada de brilhantina domava os fios de cabelos encrespados. Sempre
fazia cara de enfezado e falava grosso diante de qualquer contrariedade.
A Lidia, ah! Esta uma
pobre coitada. Quando solteira dava-se ao luxo de usar salto alto e saia justa.
Os olhos verdes e o corpo esguio contribuíam para a elegância da moça. Bastou casar
com João para largar o trabalho na
tipografia. Ora veja. Engravidou dois meses depois de casada. Vivia com um
lenço amarrado na cabeça e um permanente avental de saco tingido de azul,
independente de estar ou não na lida.
Dayse veio rápido. Afinal,
Lídia já tinha 26 anos ao casar. A idade avançada apressou o casal a ter filhos. A menina era linda. Por onde andasse,
Dayse chamava a atenção pela delicadeza dos traços. Só que o choro da criança
incomodava João. Por isso, nas noites de manha intensa, ele saia a perambular
pelas ruas e, à vezes, só voltava uns três dias depois.
Lídia se resignava. Nada faltava para ela e a filha e, no
fundo, tinha orgulho do marido bonitão.
Orgulho maior em saber que ele trabalhava na Real, uma agência de venda
passagens aéreas dos voos da Pan Air.
E a menina? Sem pai e mãe por perto, Lídia decidiu dar
guarida a garota raquítica. O acolhimento não incluia comida e roupa lavada.
Com sete anos, a menina se virava como podia. Ao apertar a fome, comia pitanga
e guabiroba do campo. Cuidar de Dayse para que Lidia pudesse fazer os trabalhos
domésticos rendia-lhe uns créditos de boa conduta. Então podia comer polenta e
usar o sabão para lavar-se antes de dormir.
A menina tinha um sonho. Imaginava ter uma calcinha de flores pequenas azuis e de ponto russo nas
bordas, igual a das outras garotas. Num desses tantos Natais que ficam para a
história, Lídia se embrenhou na máquina de costura, fez e deu-lhe a calcinha tão
sonhada. Mas a menina nunca chegou a usá-la. De tão satisfeita, pendurou-a num
cabide e de vez em quando admirava aquele que seria o presente mais valioso da
sua vida.
João se postava cada vez mais ausente. Os sumiços aumentavam,
a ponto de ficar semanas longe da
família. Um dia Lídia se enfezou. Largou Dayse com a vizinha da frente, pegou a
menina pela mão e lá se foram as duas noite a dentro a procura de João. Lídia desconfiava que o marido se embrenhava com
outra mulher. A desconfiança aumentou depois de João faltar com a comida em
casa.
Ruas escuras, barrentas e desertas. Apenas um bar aqui e
acolá iluminado com lâmpada de 40 watts. Homens feios, desatinados, bêbados,
mulheres embriagadas a equilibrar-se num copo de cachaça. Uma mesa de sinuca e
a luz tênue se encarregando de iluminar a bola a caminho da caçapa. Perto da meia-noite.
Num desses antros estava João. Ao vê-lo abraçado com uma
mulher morena de cabelos cacheados, Lídia
perdeu as estribeiras. Pegou um taco da
sinuca e quebrou tudo o que viu pela frente, exceto os traidores, porque num
lance de esperteza eles se esconderam atrás do balcão.
A menina se encolheu num canto e começou a chorar. A cena a amedrontou.
A volta prá casa foi trágica. Totalmente transtornada, Lídia
gritava de raiva sem parar. E a roupa do João, bem cuidada pela prestimosa
esposa? Não sobrou uma peça no armário. Calças, camisas, cuecas, foram arremessadas
pela janela em ímpetos de fúria assassina.
A situação mudou. Para não perecer, Lidia começou a lavar
roupa prá fora e a menina também começou a dar duro no batente.
Enquanto Lídia esfregava a rouparada no tanque, a mirrada
menina puxava a água do poço. Um pedaço de madeira improvisado servia de apoio
para alcançar a manivela. Seus braços não aguentariam o balde cheio d’água,
então o jeito era puxar de pouco em pouco.
Peças coaradas, com o cheiro gostoso de roupa secada ao sol. Lá ia a menina com a
trouxa na cabeça, com todo cuidado para não sujar o que foi lavado com tanto
sacrifício. A natureza ajudou e a roupa secou a tempo de entregá-la antes da
ceia de Natal.
Da porta, a menina olhou de soslaio aquela sala de gente rica
toda enfeitada para a noite de Natal. Ali, hipnotizada com tanta beleza, aguardava
pacientemente o dinheiro da lavagem das roupas.
Também ganhou um presente. Ou melhor, dois. Um
pacote de bolacha, que de pronto repartiu com Lidia e Dayse e o outro... Uma
calcinha de pequeninas flores azuis.
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