domingo, agosto 09, 2020

Uma história. Um pai. Uma vida.

Anos de economia próspera por conta da exploração da madeira, principalmente da derrubada dos pinheirais em abundância. As serrarias davam vida a pequenos vilarejos, cujos habitantes lá trabalhavam na transformação das enormes toras em tábuas prontas para transporte.

Uma ou duas bodegas de venda de cereais a kilo, metros de xita e fumo de corda. Dois a três botecos onde homens de camisa xadrez desbotada batiam ponto após dia de lida bruta. A igreja no alto patrocinada pelo madeireiro rico e a escola primária donde numa sala só se aprendia caligrafia e tabuada da 1ª a 4ª série. As mulheres a lavar roupa no tanque a beira do olho d´agua, assar fornadas de pão no forno de lenha no quintal e a amamentar a prole.
Assim passavam os dias.
O bom dia comadre e como vai compadre dava mostra inequívoca que todos se conheciam.
Até que.
Um homem negro, alto, jovem e bonito. Assim podia se descrever o homem que por lá apareceu sem ninguém esperar.
Bastaram poucos dias para Horácio -assim ele se chamava - estabelecer-se como carpinteiro no vilarejo. As madeiras brutas ganhavam forma de guarda-comida e, dizem, de caixões de defunto feitos no maior capricho.
Foi na entrega de um guarda-louça encomendado por Astrogildo, morador das antigas da vila, proprietário de grande quantia de terra, que o coração do Horácio deu saltos.
O começo aconteceu ali, entre olhares marotos de cumplicidades. Os olhos de Mirian brilhavam enquanto o pai e o carpinteiro se acertavam nos detalhes do móvel. Horácio voltou uma, duas, mais vezes naquela casa só para ver Mirian. Eles estavam apaixonados. Essa era a grande verdade.
Mas a felicidade durou pouco.
Ao saber do interesse de Horácio pela filha, Astrogildo virou um bicho. Esbravejou aos quatro cantos dizendo jamais permitir que uma filha sua se casasse com um preto aventureiro filho de escravos.
Magoado, decepcionado com a reação do velho Astrogildo, Horácio renuncia a sua grande e fugaz paixão. De pronto fecha a pequena oficina de carpintaria e some pelo mundo afora.
Dezesseis anos se passaram.
Passou só no calendário, porque a rotina pacata da vila continuava tal qual anos atrás.
Ele continuava bonitão, mesmo com aparência um pouco mais amadurecida denunciada pelos fios de cabelo branco.
Horácio voltou.
Muitos se lembravam dele e se apressavam a contar as novidades desde então. No fundo, no fundo Horácio queria mesmo era saber da Mirian.
Mirian casou. Vivia com Juvenal, homem branco, olhos verdes, tal qual Astrogildo queria como genro ideal. Sete filhos. Isso mesmo. Mirian tinha sete filhos, quatro homens e três mulheres. A filha primogênita recebeu o nome de Maria, mas desde pequena chamavam-na de Morena.
Morena tinha compleição miúda, meio tímida e muito trabalhadeira. Filha mais velha, teve que ajudar a mãe Mirian cuidar da criançada procriada depois dela. Tinha só quinze anos, mas aparentava mais idade dada a dura vida imposta pelas circunstâncias.
Encostado no balcão, Horácio viu uma mocinha sair da bodega com pesadas sacolas nas mãos. De imediato ofereceu ajuda e, embora reticente, a menina resolveu aceitar o préstimo.
Qual surpresa de Horácio, ao descobrir que a jovem era Morena, a filha mais velha de Mirian, a mulher cuja paixão arrebatou-lhe os sentidos noutros tempos.
Ao reconhecer Horácio, Mirian oferece um café ao inesperado visitante e em poucas palavras falam da vida e suas reviravoltas.
Horácio contou que havia casado, que teve duas filhas e agora estava viúvo. Disse que as meninas estavam morando temporariamente com a avó, mãe da falecida mulher, mas que a intenção dele seria se estabelecer na vila e trazer as filhas para morar junto.
Pois bem. Do canto da sala Morena ouviu toda a história sem dar um pio. Ela não entendeu nem tampouco perguntou à Mirian de onde e se já conhecia Horácio. Achou normal a mãe conversar com um estranho que a acompanhou até em casa.
Vez ou outra Horácio via Morena a andar pelos carreiros da vila. Trocavam cumprimentos e não raro até breves palavras.
Até que um dia veio a cartada. Horácio pede à Morena para fugir com ele. Alegou, a princípio, que precisava de alguém que cuidasse das duas filhas dele, mas que também gostava dela.
Morena ficou desesperada, passou a noite sem dormir pensando na inesperada proposta. Mesmo jovem e despreparada, topou fugir com Horácio. Estava se sentindo cansada, sem perspectiva nenhuma de futuro na casa dos pais.
Mirian virou-lhe as costas. Por um bom tempo não falou com a filha. Afinal, a Morena fugiu com o homem que foi sua grande paixão na juventude.
No novo lar, Morena trabalhava como nunca. Sem experimentar maternidade, cuidava das meninas do Horácio sem se dar conta da vida minguada.
Até que um dia Morena engravidou. Teve uma filha aos trancos e barrancos que veio a falecer aos dois anos. Morreu de fome e desnutrição. Os antigos diziam que era Doença de Macaco.
Nessas alturas já estava grávida de novo. Nasceu outra menina e depois mais outra... Ao todo, Morena vingou sete filhas.
Horácio era um pai carinhoso, homem bom. Mas quando tomava umas cachaças... o que era por demais frequente, a filharada se escondia no porão até ele se acalmar. Nas crises de bebedeira, ficava agressivo, jogava panelas para o alto, depois ia prá cama. No outro dia fazia tudo igual.
Morena sofria para cuidar sozinha das duas enteadas mais das filhas que vieram depois.
Vendo as filhas dele com a primeira mulher a sofrer privações, Horácio decidiu levá-las para morar com a avó materna, distante a uns 30km da vila.
As demais crianças viviam aos trancos e barrancos. Se a cabrita desse leite e o milho verde florescesse, tinham o que beber e comer.
Até que.
Lidia, irmã mais nova de Morena, uma jovem de porte bonito com jeito de moça da cidade, aparece na vila em visita à mana. Elas não mais se viram desde a fatídica fuga.
Lidia se surpreendeu com a vida precária daquela família. Ficou assustada com uma renca de crianças a sobreviver por teimosia naquela pequena casa fria cheia de frestas no chão de tábuas gastas.
Lidia pensou num jeito de ajudar Morena. Sugeriu - e Horácio de imediato concordou- em levar a maiorzinha de uns 3 anos para morar com a avó Mirian.
Há tempos Mirian havia se mudado da vila. A família foi embora de mala e cuia para uma cidade distante. A serraria encerrou as atividades e, sem perspectivas, muitos que dali tiravam o sustento abandonaram o povoado.
A menina cresceu criada pelos tios e avó. Só viu mãe, pai e as 6 irmãs mais novas – umas três vezes até completar 20 anos.
...
Noite de Carnaval. Como toda cidade do interior que se preza, os bailes nos clubes ferviam até o amanhecer. Lá pelas três da manhã um homem em trajes não carnavalescos, adentra o salão, avista a jovem a brincar esfuziante a marchinha, puxa-lhe o braço e diz:
- “O seu pai morreu”.
- Pai? Que pai? Exclama a menina assustada. Quando ele morreu?
- Há uns dois meses.
A menina decidiu pensar no caso só no outro dia. Afinal, o último dia de carnaval é sagrado e a ordem é aproveitar até o último acorde.